Cultivando territórios: novos espaços alimentares

Pela primeira vez na história a população urbana superou a rural. Hoje 55% das pessoas vivem em centros urbanos e as projeções mostram que esse número deve chegar a quase 70% em 2050. Isso representa um aumento de 2.5 bilhões de pessoas vivendo em áreas urbanas. Dessa forma nos perguntamos, qual é o modelo de urbanização que queremos para as próximas décadas? A resposta a essa pergunta depende da compreensão do aumento nos índices de urbanização como um desafio não só para as áreas urbanas mas também para as áreas rurais e periurbanas – sejam elas produtivas ou naturais.

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A história da cidade está intimamente ligada à história dos territórios produtivos – é uma co-evolução. De um lado temos a dilatação do espaço urbano e de outro o esvaziamento ou a dispersão no meio rural. Duas esferas indissociáveis, que trabalham dentro de uma relação de interdependência: estão ligadas econômica, social e ambientalmente e não podem ser tratadas de maneira isolada. Um desenvolvimento do território que seja pensado de forma sistêmica e integral é capaz de gerar uma produção mais eficiente com uma rede de distribuição melhor consolidada, garantindo o acesso ao alimento de forma igualitária. Além disso, um planejamento urbano capaz de articular os processos de urbanização aos territórios alimentares, preocupado com a preservação dos ecossistemas, colabora para minimizar os impactos da urbanização crescente.

A maior parte do crescimento populacional é esperado em cidades localizadas em regiões menos desenvolvidas. Até 2050, a população de Lagos, na Nigéria, terá dobrado mais uma vez, o que fará dela a terceira maior cidade do mundo. Já América Latina e Caribe têm uma expectativa de crescimento populacional de 0.2 bilhão, somente abaixo de África e Ásia. De acordo com o relatório das Nações Unidas de 2019, "Revision of World Population Prospects", no Brasil, 76% da população vive nos grandes centros urbanos, e a tendência é de elevação desse percentual nas próximas três décadas. Conforme pontua Jared Diamond, em "Armas, Germes e Aço", o que levou o ser humano a viver em cidades foi a necessidade de estar junto de suas plantações para garantir a produção de alimentos. Quando o homem passa da vida nômade, de coletor-caçador, para a agricultura e a domesticação de animais ele cria também a possibilidade da estocagem de alimentos excedentes. É o excedente que possibilita o surgimento de outras atividades econômicas, colaborando para o adensamento populacional. Nesse sentido, as cidades se consolidaram com base na agricultura, porém a criação de cadeias de distribuição de alimentos de escala regional, nacional e global, acabaram por enfraquecer a relação do homem com o cultivo da terra.

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A estação de Liverpool Station, em Londres, em horário de grande movimento de passageiros. Image © Julia Reis

Pensar as zonas produtivas de forma integrada às zonas urbanizadas coloca a Agricultura como peça chave para o entendimento dos territórios alimentares dentro do campo da Arquitetura e do Urbanismo. Sébastien Marot, curador da exposição “Agriculture and Architecture: Taking the Country’s Side”, parte da Trienal de Lisboa de 2019, defende a importância da tentativa de voltar a conectar a arquitetura com a agricultura, duas disciplinas complementares e interligadas em suas origens, porém vítimas de um crescente divórcio desde a revolução industrial. A exposição se apoia na ideia de que a agroecologia e a permacultura, uma vez que desenvolveram conceitos e estratégias úteis para imaginar uma tecnologia pós-industrial baseada numa economia radical de energia e recursos materiais, poderiam ser consideradas parte do quadro das disciplinas da arquitetura e do urbanismo, colaborando para redefinir a racionalidade dos espaços urbanos e dos meios econômicos hoje.

O intenso debate sobre o desaparecimento do conceito de rural como é conhecido até hoje, fruto do processo de meta-urbanização do planeta, tem feito muitos teóricos repensarem suas abordagens, se voltando para o campo como objeto de estudo. A exposição "Countryside: The Future” em cartaz em fevereiro de 2020 no Museu Guggenheim de Nova Iorque, com curadoria de Rem Koolhaas e Samir Bantal, coloca o ambiente rural no foco do pensamento crítico atual. A exposição é um ponto de partida importante para a nova área de investigação de Koolhaas e, como uma espécie de manifesto, alerta para que todos os arquitetos olhem para fora dos limites das cidades. Como antecipa o catálogo, os territórios rurais, remotos e selvagens a que chamamos "campos", ou os 98 % da superfície terrestre não ocupados pelas cidades, constituem a linha da frente onde hoje atuam as forças mais poderosas – a devastação ecológica, as migrações e a tecnologia. Esses locais estão mudando de maneira rápida e muitas vezes oculta, causando grandes e importantes transformações já em curso nas vastas áreas não urbanizadas do planeta. 

O Campo: O campo é agora a linha da frente da transformação. Um mundo antes ditado pelas estações e pela organização da agricultura é hoje uma mistura tóxica de experiências genéticas, nostalgia industrial, migrações sazonais, aquisições territoriais, subsídios maciços, habitações espontâneas, incentivos fiscais, tumultos políticos, informantes digitais, agricultura flexível, homogeneização de espécies... em outras palavras, mais volátil do que a cidade mais acelerada... — Rem Koolhaas, Exposição Countryside: The Future, 2020

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Estação de energia solar e linha de distribuição localizada de energia na estrada que liga as cidades de Nampula e Meconta, em Moçambique. Image © Julia Reis
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Estação de energia solar e linha de distribuição localizada de energia na estrada que liga as cidades de Nampula e Meconta, em Moçambique. Image © Julia Reis

Continuum, agroecologia e urbanismo agrícola

As fronteiras entre o meio rural e o urbano têm se diluído cada vez mais com o crescimento das cidades, consolidando o chamado Continuum. Dado o espraiamento das cidades, a malha urbana vem permeando o território do campo, enquanto é notório cada vez mais atividades rurais nos centros urbanos. A dicotomia entre o urbano e o rural, o artificial e o natural, tem ganhado um foco cada vez maior que se intensifica simultaneamente ao processo de urbanização. Quando se trata da análise dos territórios alimentares, as produções urbana, periurbana e rural, funcionam dentro de um Continuum espacial, em termos geográficos, e setorial, em termos de interesses, atores e grupos econômicos. São nas periferias das cidades que se encontram os espaços intermédios que compõem o tal Continuum, áreas de borda responsáveis pela comunicação cidade-campo e pela produção de alimentos perecíveis para abastecimento dos centros urbanos. 

Se fazem necessárias políticas integradas para fortalecer os laços econômicos, sociais e ambientais existentes, envolvendo tais espaços dentro do planejamento e da agenda urbana 1 A expansão do interesse urbano nos sistemas alimentares rurais traz desafios políticos, institucionais e culturais, principalmente quando falamos em um diálogo entre as autoridades urbanas e agrárias de uma mesma região. Os novos marcos conceituais para o desenvolvimento urbano sustentável definidos pela ONU Habitat e pelo ICLEI, por exemplo, exigem um novo "mosaico verde" ligando áreas rurais e urbanas através de espaços abertos (incluindo florestas urbanas e horticultura) que proporcionem benefícios econômicos, sociais e ambientais. Como aponta o analista político, Arthur Getz Escudero, em "Food for the Cities - Multidisciplinary Initiative" organizado pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), os desafios para conter a perda da biodiversidade, melhorar o uso da terra, adaptar-se às alterações climáticas e aumentar a segurança alimentar reforçam-se mutuamente e exigem uma abordagem holística da sua gestão para estabelecer soluções “agregadas”. Dada a atual crise econômica e ambiental, a hipótese é que nenhum raciocínio sólido possa se desenvolver sobre o futuro desses dois conceitos - urbano e rural -, a menos que sejam reconectados e fundamentalmente repensados em conjunto.

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Paisagem periurbana nas proximidades da ferrovia de acesso a cidade de Gênova, Itália. Image © Julia Reis

Levada à uma esfera mais ampla, a conexão entre cidade, agricultura e natureza tem sido chamada também de Urbanismo Agrícola e tem como objetivo desvendar os laços qualitativos entre produção agrícola e produção urbana. Em 2019, o evento "Capital Agricole - Chantiers pour une ville cultivée”, procurou juntar teóricos que têm debatido sobre o tema buscando a criação de soluções para a Île-de-France, a região administrativa onde se localiza Paris. Embora já existam hoje muitos estudos sobre as implicações da agricultura urbana na produção agrícola e sobre políticas públicas que procuram colocar a alimentação como elemento de cultura, pouco tem sido escrito sobre as implicações potencialmente profundas da agricultura na forma e na estrutura da própria cidade. 

Alguns autores como Frank Lloyd Wright e Andrea Branzi anteciparam o interesse atual pelo tema da agricultura urbana e as possibilidades do Urbanismo Agrícola, entendidos através da produção de alimentos como elemento formativo da estrutura da cidade, e não como algo complementar a ela. Tais ensaios giram em torno do papel da agricultura na determinação da ordem econômica, ecológica e espacial da cidade e surgem como resposta ao crescente êxodo rural, à industrialização e ao adensamento dos centros urbanos no início do século XX. O resultado foi uma total descentralização e a dissolução do espaço urbano em uma paisagem produtiva, tornando irrelevante a distinção entre urbano e rural, sendo esta substituída pela noção do chamado Regionalismo Suburbano.

O modelo de Wright, intitulado “Broadacre" (1934–35), se afasta das tradicionais distinções entre cidade e campo e propõe uma rede de infraestruturas de transporte e comunicação, baseada nos modelos de descentralização de Henry Ford e o direito a cada agricultor-cidadão à um hectare de terra, os quais seriam intercalados com pequenas áreas industriais, centros comerciais, mercados, edifícios cívicos e permeados por rodovias. Por sua vez, Branzi, do coletivo italiano Archizoom, com seu projeto denominado “Agronica” (1993–94), ilustra a incessante dispersão horizontal do capital por territórios pouco povoados e uma urbanização extremamente frágil, fruto de uma economia neoliberal. “Agronica” explora as relações potenciais entre a produção agrícola e energética, investigando novas versões da industrialização pós-fordista e as culturas de consumo. Ambos autores conciliam sistemas infraestruturais com paisagens construídas e naturais, se utilizando das condições ambientais para entender a cidade como um sistema contínuo de forças e fluxos inter-relacionados, o que os torna particularmente relevantes para as discussões contemporâneas dentro do Urbanismo Agrícola e da Agroecologia.

Como uma produção rural e industrial conectada às novas tecnologias pode abrir portas para uma cidade mais justa e produtiva? Na tentativa de recuperar a relação entre o habitante urbano e seus alimentos, vemos hoje surgirem fazendas de produção indoor de hortaliças, como é o caso da Fazenda Cubo em São Paulo. Vistas como pertinentes alternativas a um sistema de importação de verduras extremamente dependente das cadeias de logística de transporte, e da crescente taxação dessas importações, tais iniciativas são capazes de alterar de forma profunda as dinâmicas que relacionam campo e cidade, alimentam o debate estabelecendo vínculos entre as diferentes escalas impactadas. A criação de núcleos produtivos no meio urbano pode ressignificar todo um território consolidando uma rede de abastecimento local, onde recortes rurais são inseridos na malha urbana, ressignificando o sistema de distribuição de alimentos. Também tem se elevado o número de empresas que  utilizam ferramentas digitais para aproximar o morador da cidade dos produtores rurais. A iniciativa da Prefeitura de São Paulo, Ligue os Pontos, e a plataforma “Raízs”, ambas atuantes no Brasil e a “Cortilia", na Itália, através de uma rede de pequenos produtores das bordas das cidades, conseguem alcançar um número crescente de consumidores, lembrando o plano “Farm-to-Table (FTT)”, desenvolvido a partir de 1914 pelo Departamento dos Correios dos EUA, que se utilizava do sistema postal para distribuir produtos agrícolas diretamente para os consumidores urbanos sem que fosse necessário passar pelas redes de varejo. O potencial de tais modelos está não só nas formas de aproximação entre produtores e consumidores finais diminuindo a participação dos chamados intermediários (middle-men), como também na atitude crítica frente às mudanças de prioridades que acompanham o aumento da produção industrial.

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A Fazenda Cubo, de produção indoor, iniciou suas atividades em 2019 em São Paulo. Image © Julia Reis
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A Fazenda Cubo, de produção indoor, iniciou suas atividades em 2019 em São Paulo. Image © Julia Reis

Descentralização e ruralização

A crise sanitária causada pela pandemia de Covid-19 potencializou e tornou explícitas as profundas transformações nas dinâmicas de uma sociedade em tempos de instabilidade. Em situações de emergência, cabe aos governos garantirem as reservas alimentares estratégicas para fins humanitários. Em Wuhan, por exemplo, a "Cesta de Vegetais", projeto usado originalmente em 1988, foi reativada em 2020 permitindo o acesso a produtos frescos por parte dos cidadãos e beneficiando as fazendas peri-urbanas do entorno da cidade. Por outro lado, a pandemia acelerou movimentos migratórios e o êxodo urbano, que tendem a se intensificar cada vez mais diante da atual Emergência Climática: são aqueles chamados Refugiados do Clima. Como que em um processo inverso ao que vivemos nas últimas décadas, diante do fechamento das fronteiras e em meio ao risco de contaminação, milhares de pessoas deixaram os grandes centros urbanos retornando às suas cidades natais e às áreas rurais. Principalmente no continente africano e na Índia, o fenômeno pôde ser visto nas maiores e mais populosas cidades, como é o caso de Delhi, onde o retorno às vilas de origem passou a ser a única opção para muitas famílias sem fonte de renda após a perda de seus empregos.

O incentivo às comunidades rurais e a valorização das zonas periurbanas pode ser a chave para uma mudança de mentalidade sobre o território em que vivemos. A partir da ideia de Continuum, é possível desenvolver e direcionar recursos para as cidades secundárias colaborando para um processo de ocupação do território mais homogêneo. Os modelos de Wright e Branzi, trazidos anteriormente neste texto, apresentam cidades descentralizadas e nos dão pistas para pensarmos espaços urbanos menos densos e mais permeáveis ao entorno natural próximo, às áreas produtivas e às áreas de preservação. O contexto da Crise Climática atual clama por um novo modelo de urbanização para as próximas décadas que se sustente nos conceitos de descentralização e de ruralização. Um modelo dissociado daquele das grandes metrópoles e megalópoles  capaz de abranger todo o território e suas relações intrínsecas, articulando os meios urbano e rural. A partir de um conjunto de Políticas Públicas que se oriente através da ocupação territorial melhor distribuída, de organização policêntrica e atrelada a um sistema alimentar de produção e distribuição potencializados pela tecnologia, podemos estar dando um importante passo rumo à construção de territórios mais resilientes aos desafios de um urbanização acelerada iminente.

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Vídeo-instalação Heterotopia Fluvial, no Pavilhão Brasileiro na 17a Bienal de Arquitetura de Veneza. Image © Julia Reis

Bibliografia

BIGGS, Reinette; SCHLUTER, Maja; SCHOON, Michael L. Sustaining Ecosystem Services in Social-Ecological Systems. [S.I.]: Cambridge University Press, 2015. DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço: Os Destinos das Sociedades Humanas. Rio de: Editora Record, 2017. p. 87-150.
KLAUS, Ian. Pandemics Are Also an Urban Planning Problem. NYC: CityLab, 2020. 
MALTERRE - BARTHES, Charlotte. Food, Riots and Urbanization: Political and social conflicts as incentives to research the built environment. Zurich: FCL Research Module: Territorial Organization, 2015. 
WALDHEIM, Charles. Notes Toward a History of Agrarian Urbanism. Places Journal, 2010.
WHITE, Mason; PRZYBYLSKI, Maya. On Farming. Barcelona: Bracket and Actar, 2010. p. 25-26.

Julia Reis é Arquiteta Urbanista formada pela Universidade Mackenzie em 2014, pós-graduada em Geografia, Cidade e Arquitetura pela Escola da Cidade. Concluiu em 2021 o mestrado em arquiteturas emergenciais “Emergency and Resilience” na IUAV (Veneza) e colaborou com o Plano de Ação Genova 2050 no mesmo ano. É fundadora do Estúdio Lava atuando nas áreas de arquitetura, paisagem e território e desde janeiro de 2022 é professora assistente na disciplina de Projeto I, da Graduação da Escola da Cidade.

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Sobre este autor
Cita: Julia Reis. "Cultivando territórios: novos espaços alimentares" 19 Mar 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/977803/cultivando-territorios-novos-espacos-alimentares> ISSN 0719-8906

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